Toda a gente dentro do mundo de IT conhece o famoso Silicon Valley. O paraíso de desenvolvimento de software, onde as melhores mentes se juntam para criarem produtos que mudam o mundo. E isto não foge muito da verdade. Muitas empresas, que hoje têm um impacto global significativo, sediaram-se nesta região do norte da Califórnia. Graças a um investimento incansável pelo setor militar americano na região, universidades com grandes campos de investigação científica, regulamentos governamentais favoráveis a empresas, e pioneiros no campo da eletrónica como William Shockley (não ignorem o facto de ele ter sido eugenista), John Bardeen e Walter Brattain, Silicon Valley é hoje ainda vista como a região onde um informático deve estar se quer ser alguém na vida.

Contudo, tudo tem o seu lado menos bom. O boom do setor informático resultou em rios de dinheiro a serem atirados para a região, e nos últimos anos temos visto a ascensão dos tech bros, homens, alguns deles chauvinistas e misóginos (a olhar para ti Elon Musk), todos eles definitivamente ultra-capitalistas, cujo lema de vida parece ser “O trabalho é a única coisa que me traz satisfação espiritual. O dinheiro é a única coisa que me traz satisfação sexual. Se vejo uma moeda de um euro, tenho um mini orgasmo.”. Não queremos impingir em ninguém como viver a sua vida. A nossa carreira profissional pode e deve trazer um sentido de realização pessoal a todos nós, para sentirmos que estamos a contribuir algo útil para a sociedade. O problema é que estes tech bros fazem precisamente isso. Até dizem que aulas de música deviam ser banidas para crianças de 10 anos aprenderem a fazer o IRS (não se chateie muito Sr. Diogo. Senão começo a tocar flauta!). Porque a única coisa que interessa é dinheiro. Sempre, dinheiro. Maximizar retorno de investimento. Maximizar a quantidade de conversas da treta para continuar os esquemas de pirâmide. Esquemas de pirâmide? O quê?

Sim leitores, Silicon Valley não está imune de burlas, fraudes, scams, o que queiram chamar. Caso precisem de elucidação sobre o que é um esquema de pirâmide, deixo aqui a melhor explicação possível. Parece incrédulo que uma região tão sofisticada como Silicon Valley pudesse ser submetida a este esquema tão simples. Mas é verdade. Passo a explicar com uma pequena história:

Imagine-se como um engenheiro informático. Tem aspirações, como qualquer outro engenheiro, de querer resolver problemas. Em particular, quer resolver um problema que as pessoas tenham. Quer genuinamente ajudar as pessoas a terem uma vida mais simples. Para tal, compromete-se a criar um robot capaz de ir fazer compras ao supermercado por si. E decide fazer o salto. Com o dinheiro que teve a poupar ao longo dos anos, mais algum de amigos e família (os seus primeiros investidores), abre a sua empresa, GroceryRobots.

No primeiro ano de vida da sua empresa, está sozinho a fazer tudo. Programação, marketing, gestão, contabilidade, etc.. No final do ano desenvolve o seu primeiro protótipo, um robot com um sistema de GPS para se saber deslocar, umas rodas, um ecrã onde escreve o que precisa que o robot traga, um compartimento para o cartão de crédito para o empregado do supermercado poder pagar a compra e um cesto onde colocar os produtos. Fala com um supermercado local ao lado da sua casa e consegue então arranjar o seu local de teste. Tem consciência que o seu robot não é perfeito, mas existe um ponto de início.

Chega ao final do primeiro ano e repara que já está sem dinheiro para continuar a sua empresa. Está na hora de ir comprar investidores. Aqui entram as Venture Capitalists (VCs), que são basicamente empresas que têm muito dinheiro para dar a outras empresas, com o intuito de fazer mais dinheiro. Divertido, não é?

Continuando a sua aventura, bate às portas destas VCs até que uma lhe concede a oportunidade de fazer um pitch. Mostra o vídeo do seu robot rudimentar a fazer compras e discursa sobre como isto irá revolucionar o mercado. Mais ninguém terá que ir às compras no futuro! Mas, infelizmente, esta VC não acredita em si e manda-o embora. E então, repete este processo, até que, finalmente, o José da VC “Dinheiro e Companhia”, fica convencido da sua ideia. Ele aceita fazer-lhe um investimento inicial para que possa aumentar a equipa da GroceryRobots e continuar o desenvolvimento da sua visão para o futuro das compras. Fica entusiasmado. “Finalmente, alguém que entende a minha visão. Que quer ajudar os outros!”. Isto não podia estar mais longe da verdade.

O seu segundo ano como empresa é fantástico. Contrata uma equipa de engenheiros, uma pessoa para tratar do marketing e um contabilista para a gestão financeira. O seu robot passa dum protótipo que estava sujeito a ser assaltado, para algo mais seguro, mais eficaz. Mas o dinheiro não é infinito. Chega ao fim deste ano e apercebe-se que para continuar a sua visão precisa de mais dinheiro. E então vai falar com o José da “Dinheiro e Companhia”:

  • “José, José, preciso de mais dinheiro para garantir que o robot se desvia das pessoas no supermercado!”
  • “Pá, isto aqui tá apertado, não te podemos emprestar mais dinheiro. Mas olha, eu conheço o Joaquim da “Companhia e Dinheiro”. Eu vou marcar-te uma reunião com ele. Dizes que eu investi que ele percebe o que se passa.”

E então vai falar com o Joaquim. Ele fica na dúvida acerca do seu projeto, mas como lhe disse que o José investiu, ele acaba por investir também.

No terceiro ano da sua empresa, as coisas já não correm tão bem. O progresso do robot estagna. O dinheiro começa a acabar outra vez. O José indica-lhe outra VC, “Companhia do Dinheiro”, e um amigo dele, o Manuel. O Manuel adora criptomoedas e AI. Na reunião com o Manuel, ele não fica convencido. Mas você diz-lhe “Estavamos a pensar integrar AI e criptomoedas e blockchain no robot, mas sem mais dinheiro não nos é possível”. O Manuel de repente arrebita. “Oh caraças! Porque é que não disseste isso logo! Eu ouvi dizer que blockchain AI com criptomoedas vai ser o futuro. Toda a gente fala nisso. Olha, toma lá mais uns milhões. Continua a investir na publicidade da AI. O pessoal vai ficar maluco.”. E aqui começa o problema.

No quarto ano da sua empresa, o robot passa a segundo plano. O que era suposto ser algo simples e que ajudasse a facilitar a vida das pessoas passa para segundo plano. Com a vontade de ter mais dinheiro, mais investimentos, o foco passa a estar na publicidade. Nas buzzwords. Na hype. Na criação de expectativas falsas. De repente, o seu GroceryRobot passa a ser capaz de limpar a sua casa, de ir passear o cão, de pintar quadros, de lavar loiça, tudo graças à blockchain de AI que vai revolucionar o mercado e mudar o planeta. O êxtase que sentiu quando o Manuel lhe deu 5x mais o dinheiro que precisava apodera-se de si, começa a corrompê-lo lentamente. Os engenheiros que contratou no segundo ano demitem-se porque já não se alinham com a visão da sua empresa. Mas não quer saber. Contrata outros engenheiros para os substituir. Mais baratos, para haver mais dinheiro a ser gasto na publicidade e no marketing. Não interessa se a qualidade do seu robot fica pior, desde que continue a gerar hype. Você começa a sonhar nas mansões, nos iates, nos aviões privados, na vida de luxo que vai ter.

A este ponto, o José, o Manuel e o Joaquim têm muito dinheiro em jogo. Eles querem ver o seu dinheiro de volta a certa altura. Como foram os primeiros investidores, têm uma fatia considerável da sua empresa. Começam a colaborar mais consigo e vão-lhe sempre dando referências para prosseguir com as suas rondas de investimento (já deve ter lido nas notícias acerca de Series A, B, C, D e por aí fora.). O dinheiro continua a crescer, apesar da sua empresa já não ter valor, para além de publicidade e marketing especulativos. Você começa a praticar mais sobre como aparecer em público. Começa a fazer posts nas redes sociais com mais frequência, muitas vezes estes posts são polémicos e controversos, para gerar mais atenção. Mais atenção significa mais investimento. E é só isso que interessa agora. Pessoas que compraram o seu produto e falam mal dele não interessam. “O robot nem consegue chegar ao supermercado em frente a minha casa. Como é que esta empresa pode afirmar que vai revolucionar o mercado das compras?”. Isto não interessa, desde que os investidores continuem a injetar dinheiro. É demasiado grande para falhar. Não pode falhar. E como do outro lado tem pessoas a dizer “Wow, que empresa revolucionária!”, “As pessoas que falam mal da GroceryRobots não percebem nada do que estão a falar. (O)(A) leitor(a) é uma inspiração para a nossa geração. Ignore the haters!!!”, o seu ego não fica totalmente magoado.

Passado mais alguns anos, e umas quantas rondas de investimento, alcança o sonho de qualquer startup. O estatuto de unicórnio, que equivale à sua empresa ser avaliada em um mil milhão de dólares. Os seus investidores dizem todos “Está na altura de levar a sua grande empresa para a bolsa”. Apesar da sua empresa agora ser uma representação superficial do seu sonho inicial, e de ainda por vezes duvidar de si mesmo e se este caminho é o mais correto, o dinheiro chama por si. E silencia qualquer pensamento consciente de que o que está a fazer é imoral. E a sua empresa, GroceryRobots é cotada na bolsa através de um IPO (Initial Public Offering). Lá no fundo sabe que a empresa não tem nada. As suas ações daqui a algum tempo vão valer 10x menos do que valem hoje. Então, vende as suas ações todas (ou parte delas para não causar suspeitas). Os seus investidores fazem o mesmo. Pouco a pouco começa a lucrar do esquema que montou com os seus investidores. Os seus empregados, a quem nunca deu ações porque precisava delas para atrair investidores, daqui a uns meses ficam desempregados. A empresa vai cair, mas fez ainda umas centenas de milhões pelo caminho para ter a sua vida de luxo. O que outrora era um sonho para ajudar as pessoas a fazerem compras sem preocupações, fica na história como um projeto falhado e uma fraude. Eis que passado um ano ou dois destes acontecimentos, o Joaquim bate à sua porta: “Tenho aqui esta startup interessante chamada CryptoRevolution, queres investir?”. O ciclo continua.

FIN

Perdoem-me o drama desta história curta, mas isto é uma boa reflexão do que já aconteceu inúmeras vezes no mundo real. Talvez o exemplo mais famoso seja o da Theranos e da sua fundadora, Elizabeth Holmes. O que podemos fazer quanto a isto? Bem, chamar à atenção das pessoas das fraudes quando elas aparecem. Para os engenheiros que lerem isto e se encontrarem numa destas startups, joguem o jogo. Ganhem ações da empresa. Eu sei que poderá ser difícil aguentar tanta bullshit durante tanto tempo, mas pensem no objetivo final. Se no final conseguirem as recompensas, utilizem-nas para melhorar o nosso mundo, seja a que escala for. Infelizmente, isto é algo que é muito difícil de bloquear a nível invidiual. Creio mesmo que a melhor jogada é participar no sistema, tirar alguns frutos, e depois com esses frutos mudar a nossa comunidade a uma escala mais pequena. Lutem pelo que é vosso.

Caso queiram perceber mais sobre isto, vejam este vídeo.

P.S.: Se houver alguma empresa chamada GroceryRobots, a empresa que relato neste post não tem qualquer tipo de vínculo ou ligação com a empresa do mundo real. A história curta relatada no post é pura ficção. Por favor não nos processem.

UNCAUGHT_EXCEPTION: Class “Money” has corrupted your brain at line 81264781 of brain.go.